Música.

 

Introdução:

 

O assunto principal desta publicação, cujos leitores irão, quase que certamente, ter idéias consistentes dos significados denotativos e conotativos da palavra. Apresentar a palavra ‘música’, como uma entrada em um dicionário de música, pode implicar tanto em uma definição oficial quanto em um tratamento propriamente compreensivo do conceito de música, em todos os tempos, em todos os lugares e em todos os sentidos. Esta última requereria discussão de muitos pontos de vantagem, incluindo o lingüístico, biológico, psicológico, filosófico, histórico, antropológico, teológico e até mesmo legal e médico, junto com o musical no mais amplo sentido. Impor uma única definição insulta a natureza amplamente relativística, intercultural e historicamente consciente deste dicionário.

 

Selecionando de vários pontos de vista alternativos, este artigo aponta problemas e abordagens para perspectivas que exibem a grande variedade de musicas do mundo e da diversidade de atitudes culturais e concepções de música. As definições verbais providas em padrões de lingüística e em obras de referência musicológica, mesmo considerando somente aquelas em inglês, diferem substancialmente, e as definições de fato como expressado na atividade e descrição humana, provem ainda um maior fôlego. Diferentes sociedades, subculturas, períodos históricos e músicos individuais, podem ter idéias nitidamente diferentes sobre o que se constitui música, suas características e essencialidades, sua importância, função e significado. Prover uma definição e caracterização universalmente aceitável tanto de palavra quanto do conceito, está além da capacidade de uma única declaração de um autor, e este artigo, é assim, uma amostra de compêndio modesto de visões encontradas na literatura de musicologia histórica e etnomusicologia, omitindo, propositalmente, discussão detalhada dos pontos de vista de várias disciplinas pertinentes incluindo psicologia, físicas, estéticas, pedagogia e teoria da música.

 

Os parágrafos seguintes assim consideram, primeiro, definições formais e propriedades da palavra ‘música’ em inglês e – em uma extensão menor – seus equivalentes em alguns outros idiomas europeus, incluindo considerações de etimologia, obras de referência de diferentes tipos, autoridades européias do passado e tradições locais; as idéias fundamentais sobre música, seus conceitos e suas características, seus limites e relações em uma amostra de culturas; e terceiro, o conceito de música em seu uso por musicólogos, e como um problema no pensamento musicológico, incluindo consideração de definições da palavra e o conceito em dicionários de música, suas características centrais, suas relações com as outras artes, cultura humana genericamente e sociedade, sua classificação, sua existência como um fenômeno universal e o problema de abordar a arte como um mundo da música ou das músicas. Para uma discussão da música por perspectivas psicológicas e outras relevantes, e o conceito em períodos passados da história da música européia, ver (por exemplo) Psychology of music; Philosophy of music; Physics of music; Sociology of music; Sound; Medieval; and Renaissance.

 

Dicionários idiomáticos.

 

Muitos dicionários de inglês e de outros idiomas europeus, como também enciclopédias gerais – autoridades gerais em definições em cultura – focam em uma de duas abordagens. Pode haver uma definição que tente especificar todas as características salientes da música, mas, claramente, usa como modelo a música Ocidental na tradição de belas-artes, vendo música principalmente como uma série de sons e um grupo de composições, e sobre atividade musical consistindo principalmente de composição, expressa por uma combinação de sons. Ou a própria definição pode ser admite como correta, e as obras movem-se para explicações, etimologia e classificação.

 

Por exemplo, a definição de música do OED começa: ‘aquele das belas artes que é concernente com a combinação de sons como uma visão da beleza em forma da experiência da emoção; também, a ciência das leis ou princípios (melodia, harmonia, ritmo, etc.) pelos quais esta arte é regulada’. O Webster's Third International Dictionary (New York, 1981) começa: ‘a ciência da arte de incorporar combinações agradáveis, expressivas, ou inteligíveis de sons vocais ou instrumentais em uma composição tendo estrutura e continuidade definida’. Mas ambos os dicionários também provêem definições secundárias indicando a performance de música em geral, e eles incluem sons agradáveis tais como a canção de pássaros ou a água corrente.

 

Um levantamento de dicionários antigos e recentes de alguns idiomas europeus provê variações sobre aqueles: O Brockhaus-Wallring deutsches Wörterbuch (Wiesbaden, 1982) define música: ‘die Kunst, Töne in ästhetisch befriedigender Form nacheinander (Melodie) und nebeneinander (Harmonie) zu ordnen, rhythmisch zu gliedern, und zu einem geschlossenen Werk zusammenzufügen’ (‘a arte de combinar sons de forma esteticamente satisfatória em sucessão e simultaneamente, organizando-os ritmicamente e integrando-os em uma obra completa’).

 

O Grande dizionario della lingua italiana (ed. S. Battaglia, Turin, 1981) move-se em uma direção similar: ‘Arte di combinare e coordinare variamente nel tempo e nello spazio i suoni, prodotti per mezzo della voce o di strumenti e organizzati in strutture quantificate secondo l'altezza, la durata, l'intensità e il timbro; scienza dei suoni considerati sotto il profilo della melodia, dell'armonica a del ritmo’ (‘a arte de combinar sons e coordenar-los no tempo e espaço, produzido por meio da voz ou de instrumentos e organizado em estruturas de acordo com a altura, duração, intensidade e timbre; ciência do som subdividida em melodia, harmonia e ritmo’).

 

E. Littré's Dictionnaire de la language française (Paris, 1873), um dos dicionários práticos clássicos de francês, dá como sua segunda definição: ‘science ou emploi des sons qu'on nomme rationels, c'est-à-dire qui entrent dans une échelle dite gamme’ (‘ciência do uso racional dos sons derivados, isto é, aqueles baseados em escalas’), indicando a presença dúbia de ciência e arte, conhecimento e atividade, a base racional e a importância primária das escalas.

 

Para a população letrada da Europa Ocidental, se os principais dicionários refletem convicções sobre a linguagem geralmente empregada e usos amplamente defendidos, a palavra ‘música’ refere-se em primeira instância à composição. Música é arte e ciência, envolve a combinação satisfatória dos materiais constituintes – mas principalmente notas – com a intenção de ser bela, expressiva ou (mas não necessariamente e) inteligível. As definições de dicionário sugerem que música serve tanto para funções estéticas como comunicativas. O combinar de notas é a atividade principal do artista musical cujos propósitos e considerações estéticas não são enfatizados, mas substituídos pela atenção a elementos da música e pela música como uma ‘ciência’.

 

Enciclopédias gerais.

 

Em contraste com dicionários idiomáticos, cuja função é explicitamente definir palavras com pequena análise ou discussão do contexto cultural, a tarefa das enciclopédias gerais é prover uma visão geral de fatos humanos e naturais de uma perspectiva cultural especifica. Eles devem incluir informações sobre música, e uma variedade de abordagens que eles tomam para definir a palavra ou prover uma conceitualização geral maior que o dos dicionários. No caso de alguns vêem a música sendo um dos domínios básicos da cultura humana, o que pode ser admitido como correto, não precisando ser definido.

 

Por exemplo, La grande encyclopédie Larousse (Paris, 1975) dá uma sentensa: ‘Language des sons qui permet au musicien de s'exprimer’ (‘linguagem de sons que permite o músico expressar-se’), e então passa para uma descrição da história da música. Brockhaus Enzyklopädie (Wiesbaden, 1971) define música simplesmente como ‘die Tonkunst’ (um sinônimo para ‘Musica’ que conota música especificamente como uma arte) e então passa para especificações históricas e teóricas. O Grote Winkler Prins encyclopedie (Amsterdam, 1971) introduz seu artigo sobre música dizendo, simplesmente: ‘Kunstvorm die berust op het ordenen van klankfenomenen’ (‘forma de arte baseada na ordenação do fenômeno som’).

 

Preparando o leitor para uma visão ampla, mas não definindo explicitamente, The New Encyclopedia Britannica (Chicago, 1974) oferece em seu Micropedia, embaixo do artigo ‘Music, Art of’: ‘expressão em forma musical, da mais simples à mais sofisticada, em qualquer meio musical’. Sua contraparte, o artigo intitulado ‘Music, Art of’ no Macropedia, começa: ‘Tanto a simples canção popular quanto a composição eletrônica complexa pertence à mesma atividade, música’. Nenhum artigo começa com uma definição explícita, assumindo que o leitor sabe o que música é, mas ambos circunscrevem, provêem limites, e enfatizam a riqueza e a natureza intercultural do assunto. Ao caracterizar este amplo domínio da cultura, o Macropedia vai imediatamente apontar que ambos extremos ‘são humanamente criados, ambos são conceituais e auditivo, e estes fatores tem estado presente na música, em todos os estilos e em todos os períodos da história, Oriental e Ocidental’.

 

O caráter humano-específico da música é, também, parte da definição explícita, na Great Soviet Encyclopedia (traduzido da terceira edição, Nova Iorque, 1974): ‘Uma forma de arte que reflete a realidade e afeta o homem, através de seqüências de sons sensíveis e especialmente organizadas seqüências de sons que consistem principalmente em notas (sons de altura definida). Música é uma variante específica do som feita pelo homem’.

 

Uma amostra de dicionários autorizados e enciclopedias gerais de nações Ocidentais mostram substancial acordo entre a elite cultural destas sociedades. Talvez haja discordância na necessidade por definição explícita, mas todas estas obras mantêm que música envolve sons e sua combinação, que é tanto arte como ciência – envolvendo talento e criatividade bem como conhecimento – e que sua manifestação principal é a composição musical (com princípios racionais), em lugar de outras atividades e eventos que pertencem ao domínio da música.

 

Definições da palavra e conceito.

 

Definições verbais escritas por e explicitamente para musicólogos são muito variadas, e as discussões deixam a questão em aberto, como indicado, por exemplo, por uma quantidade de obras do final do séc XX, que devotaram os problemas fundamentais do conhecimento musical tais como a questão da identidade da música – o diálogo em Was ist Musik? de Carl Dahlhaus e Hans Heinrich Eggebrecht (1985), What is Music? editado por Philip Alperson (1987), Contemplating Music por Joseph Kerman (1985) e Rethinking Music editado por Nicholas Cook e Mark Everist (1999). Tais obras dificilmente provêem definições definitivas e a questão raramente é ampliada em documentos de importantes conferências.

 

Um estudo das definições de música em dicionários de música, provê um claro contraste com os dicionários de idioma, que geralmente concordam, e são obviamente baseados nos valores da música de arte Ocidental. Alguns dicionários de música evitam o termo inteiramente, na suposição de que nenhuma definição é necessária, ou talvez porque nenhuma seria totalmente satisfatória. Outros fornecem tentativas detalhadas de dispor a quintessência da música, ou o caráter da música em sua forma ideal. Quando pressionados a se comprometerem, os musicólogos provêem um conjunto desnorteado de definições e, ainda mais, de visões que sugerem o que em música é essencial e importante. Os seguintes exemplos ilustram:

 

O principal trabalho de referência italiano, Enciclopedia della musica (ed. Claudio Sartori e Riccardo Allorto, Milan, 1963–4), simplesmente diz, ‘l'arte dei suoni’ (‘a arte dos sons’) que é seguido por uma curta explicação.

 

O livro de referência de língua inglesa mais amplamente utilizado nos EUA, o Willi Aple´s Harvard Dictionary of Music (Cambridge, MA, 2/1969), tem o verbete ‘música’ dedicado inteiramente à discussão da etimologia do termo, e a classificação de música na antiguidade e início da idade média, mas sem uma definição com a qual o autor concorde.

 

A obra de referência alemã mais amplamente utilizada, Riemann Musik Lexikon. (12º edn, Sachteil, Mainz 1967) traz na primeira parte do artigo ‘Musik’ uma definição muito cuidadosamente circunscrita e caracterizada por Hans Heinrich Eggebrecht:

 

‘Musik ist – im Geltungsbereich dieses Wortes: im Abendland – die Künstlerische Gestaltung des Klingenden, das als Natur- und Emotionslaut die Welt und die Seele im Reich des Hörens in begriffsloser Konkretheit bedeutet, und das als Kunst in solchem Bedeuten vergeistigt ‘zur Sprache’ gelangt kraft einer durch Wissenschaft (Theorie) reflektierten und geordneten, daher auch in sich selbst sinnvollen und sinnstiftenden Materialität. Denn das Element der M[usik], der Ton, ist einerseits (vormusikalisch) Sinnträger als hörbares In-Erscheinung-Treten der Innerlichkeit eines Erzeugers, andererseits (innermusikalisch) Sinnträger als Nutzniesser einer Gesetzgebung (Tonordnung), die den Ton dem spezifisch musikalischen Gestalten, Bedeuten und Verstehen verfügbar macht und die dabei zugleich, in dem sie die Naturgegebenheit des Klingenden Rechnung trägt, Naturgesetzlichkeit ins Spiel bringt’.

 

‘Música é – na área na qual o conceito é relevante, cultura Ocidental – a formação artística daqueles sons que representam o mundo e o espírito, em forma de voz da natureza e emoção no reino da audição, concretamente concebida, e que alcança significado como uma arte, tornando-se tanto significativa quanto criadora de significado, através da cognição e da teoria reflexiva e ordenada. O elemento básico da música, o som, é por um lado o portador (pré-musicalmente) de significado como reinficação da essência de criação, enquanto por outro lado é (intra-musicalmente) o veículo de significado como um beneficiário do cânone (ordem tonal). Isto conduz à unidade da música, o tom, suas formas especificamente culturais, significados e concepções, e, ao mesmo tempo como um fenômeno natural, permanece justificada pelas leis da natureza’.

 

Ingmar Bengtsson, no Sohlmans musiklexikon (Estocolmo, 1948–52), começa um artigo geral de média duração, ‘Musik’, com ênfase no relacionamento do conceito de música com dança e movimento e com a fala em muitas culturas, e continua:

 

Como o conceito de música é delineado e definido em diferentes épocas e diferentes partes do mundo, depende principalmente de que critério se aplica, isso está nas normas e condições para as quais deve ser conhecido antes de algo ser considerado música em contraste com ‘não-musica’ ou ‘não-mais musica’, ou música ‘boa’, ‘correta [aceitável]’, em contraste com ‘má’. Estes critérios e normas variaram enormemente, enquanto que, ao mesmo tempo, eles raramente foram consistentemente, ou mesmo distintamente, formulados.

 

            Na enciclopédia de música russa Muzïkal'naya entsiklopediya (Moscou, 1973–82), o próprio editor, Yuri Keldïsh, provê o artigo abaixo sobre ‘Música’:

 

Uma forma de arte que reflete a realidade e tem efeito no ouvinte através da resposta intelectual e das combinações de som. (…) Ao expressar imagens mentais e emoções em forma audível, a música pode ser identificada como uma forma de comunicação humana e como uma influência sobre o estado psicológico de mente. Esta influência é possível por causa da harmonia física e biológica, da sensibilidade musical dos seres humanos (como de muitos outros seres vivos), e da psicologia humana, especialmente emoções, e do som como um estímulo e sinal para atividade. De algumas maneiras, há uma analogia entre música e fala, especialmente entonação da fala, onde os sentimentos intrapessoais e atitudes emocionais em direção ao mundo externo são expressas por alterações de notas e através de outros sons vocais expressivos característicos. Esta analogia torna possível identificar a natureza da música de acordo com a entonação.

 

Die Musik in Geschichte und Gegenwart (1st edn, ix, Kassel, 1961) provê um artigo principal em ‘Musik’ cuja primeira parte, trata de suas propriedades psicológicas e acústicas. A segunda parte, preocupa-se com definições, Heinrich Hüschen, começa:

‘Die Musik ist diejenige unter den Kunstdisziplinen, deren Material aus Tönen besteht. Von dem in der Natur vorkommenden Tonmaterial, gelangt in der Musik nur ein verhältnismässig geringer Teil zur Verwendung. Die aus der unendlichen Zahl von Naturtönen ausgewählte endliche Zahl von musikalischen Tönen wird durch bestimmte Rationalisierungsprozesse zu bestimmten Tonsystemen zusammengeschlossen’.

 

‘Música, entre as disciplinas artísticas, é aquela cujo material consiste em tons. Da matéria-prima disponível na natureza, apenas uma proporção pequena é realmente usada em música. O número finito de tons selecionado para uso musical, da infinidade disponível da natureza, é organizado em sistemas específicos de tons, através de processos racionais definidos’.

 

Em uma seção posterior, dedicada à questão da definição, aponta muitas tentativas históricas para definir música, mas conclui rapidamente:

 

‘Gleichwohl gibt es bis zur Gegenwart keine vollkommene und letztgültige Definition der Musik und also keine Patentlösung für die Frage, was die Musik in ihrem Wesens- und Seinsgrund nach sei. Vielmehr lassen alle Begriffsbestimmungen, wie sie im Musikschrifttum vorkommen, immer nur eine ganz bestimmte Seite des Gesamtphänomens in den Vordergrund treten’.

 

‘Por tudo isso, não há, ao tempo presente, uma completa e definitiva definição de música, e assim nenhuma solução absoluta para a questão de que música é, em sua essência. Particularmente, as várias definições do conceito que aparece na literatura, sempre enfatizam um aspecto particular do fenômeno total’.

 

Enquanto concordando amplamente que música é uma arte de combinar sons, estas definições sugerem uma variedade de opiniões. Sartori relaciona as artes que consistem em som como a forma básica de música, evitando, por exemplo, o dilema proposto pelas artes que envolvem fala. Bengtsson e Hüschen implicam que a variedade de definições não congruentes de diferentes períodos e culturas podem ser todas igualmente válidas, enquanto Eggebrecht mantém que música, no sentido que ele deseja apresentar isto, é um fenômeno Ocidental; ou, talvez mais corretamente, que a definição que ele apresenta refere-se somente à música na cultura Ocidental e, certamente, na música de arte – que, o argumento invertido, significa que, para seus propósitos, a única verdadeira ou própria música é a música de arte Ocidental. Implicando uma base na natureza, abordagem unicultural de Eggebrecht, contrasta com a de A.J. Ellis e de seus sucessores que se tornaram etnomusicólogos, para os quais música, em suas variações culturais, não é explicitamente um fenômeno natural. Keldïsh indica uma visão intercultural informada pela psicologia e biologia. No todo, as definições são limitadas pelo uso cultural que música requereria, indicando, talvez, que o modelo do conceito de música dos musicólogos inclui um centro do qual cada definidor está correto, uma quinta-essência, junto com limites flexíveis e discutíveis.

 

 

NETTL, B. Music. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Oxford University Press, 2003.